sexta-feira, 14 de maio de 2021

EU, CRISTÃO!

EU, CRISTÃO!

 

Há algum tempo planejo escrever uma declaração pessoal de fé, mas o tempo é preenchido por tantas atividades que a escrita fica sempre para o momento oportuno que não chega, confesso que prefiro ler a escrever, talvez porque há tantas pessoas mais capazes escrevendo, que ler seus livros, ensaios e artigos torna-se muito prazeroso.

Chega um momento, todavia, que é preciso externar uma posição pessoal sobre a cosmovisão que abraçamos e através da qual passamos a enxergar o mundo que nos cerca.

Nossos dias reclamam essa tomada de posição, especialmente pela convulsão cultural que temos presenciado no Brasil e em todo o mundo, onde antigas ideologias totalitárias, que pareciam sepultadas sob a ignomínia pós-Segunda Guerra, reaparecem sem pudor algum dos dois lados da Linha do Equador, até mesmo no nosso multicultural país.

Para tanto, basta comparar com olhar atento as características do que Umberto Eco chama de “Ur-Fascismo” ou “Fascismo Eterno”  na sua pequena obra de mesmo nome[1], e ler sistematicamente as postagens e declarações de muitos políticos brasileiros e seus “seguidores”, suas reações, pressupostos e princípios para enxergar isso. Está tudo diante dos nossos olhos, na tela do smartphones, para quem tem olhos para ver.

Tudo isso catalisado pela abundância dos meios de comunicação que a modernidade tecnológica oferece; hoje qualquer pessoa que tenha um celular e acesso à internet pode apresentar um programa audiovisual e expor seu pensamento; com isso, a centralidade da notícia, da informação, da formação de opinião deixou de ser propriedade de grupos de informação tradicionais como jornais, revistas etc. e ganhou as ruas, com todos os benefícios e riscos que isso oferece, em especial da ausência de responsabilidade com a integridade e veracidade das informações.

Na concepção do sociólogo Zygmunt Balman, vivemos em uma “modernidade líquida”[2], termo usado para definir o mundo globalizado, marcado pela “liquidez e volatilidade”. No mundo “concreto” a religião e o nacionalismo davam um sentido para a comunidade e um sentimento de pertencimento. Assim, o ser humano construía sua identidade a partir dessas referências.

Todavia, uma mudança nos anos 60 e 70 promoveram o enfraquecimento das “instituições” que serviam como supedâneo para o indivíduo construir sua identidade como as crenças religiosas, a família e a escola.

De Bauman, ainda, pode ser destacado o conceito do “pêndulo” que oscila na sociedade humana, entre segurança e liberdade, sendo que na visão do referido sociólogo, aparentemente este pêndulo esteja voltando da “liberdade”, o sentimento reinante no pós-Segunda Guerra, para a “segurança”, em especial pelo medo genérico (sem uma causa identificável, chamado de “medo líquido” por Balman) da inconstância fluída da modernidade líquida (tardia ou pós-modernidade).

Na Europa, notícias recentes do manifesto de militares franceses sobre uma iminente “guerra civil sangrenta”[3], movida pelos sentimentos anti-imigrantista presente na França, em especial contra os imigrantes islâmicos, foi apoiada por Marine Le Pen, reconhecida representante da extrema-direita francesa. O retorno do pêndulo rejeita a liberdade da convivência pacífica entre os povos, o globalismo e o pluralismo;  ressaltando o nacionalismo e a defesa da predominância religiosa da maioria.

No caso do Brasil, o retorno do pêndulo tem ressuscitado velhos medos do século XX, tais como o “comunismo”[4]. Mas o pêndulo ainda não retornou da liberdade para a segurança, há intensa propaganda de matriz libertária individual em foco, tais como os direitos da comunidade LGBTQ+; movimento feminista, inclusive pró-aborto; movimentos sociais pela distribuição de terras, moradias; direitos humanos etc.

Todos os grupos ideológicos querem guiar o movimento do pêndulo para a liberdade ou segurança, o choque é inevitável e, na era da tecnologia, acontece brutalmente nas redes sociais. O ódio jorra no YouTube, Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter etc. O debate amistoso, cordial e construtivo de ideias não tem espaço nestes ambientes virtuais.

Potencializa este ódio os expedientes utilizados no que podemos chamar de “guerra cultural”. O uso de “robôs”, que substituem as pessoas reais; e as Fake News, que apresentam mentiras como se fossem verdades, ou a verdade mesclada com a mentira (meias verdades), que dá no mesmo.

Isto aliado ao aspecto empresarial que as redes sociais empregam, valendo-se dos dados de cada usuário para obter lucro com o engajamento[5] por meio de algoritmos que aprisionam a pessoa em uma bolha de informações para mantê-la conectada por mais tempo, exposta aos anúncios publicitários que geram o lucro. Um detalhe é que “existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software[6], isso já deveria nos fazer refletir sobre o uso das redes sociais.

Tal bolha apenas potencializa o pensamento do próprio usuário; aquele que tem, por exemplo, um viés de esquerda ou direita, receberá as notícias, informações, produtos etc. que mais se adequam ao seu próprio pensamento, privando-o do contraditório e do direito fundamental às múltiplas fontes de informação.

Se você, como eu e mais 60% em média dos usuários[7], não sabia da existência ou da extensão e risco dos algoritmos, recomendo a leitura do Livro “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais”, de Jaron Lanier, ou assista ao documentário “O dilema das redes”, na Netflix. Para uma reflexão sobre a necessidade de fontes seguras e múltiplas de informação, recomendo o livro do jornalista americano Franklin Foer, “O mundo que não pensa”.

O fato é que somos alimentados nas redes sociais pelo que já está no nosso coração, e é identificado pelos algoritmos que as redes sociais usam para selecionar dentre a infinidade de informações aquilo que vai nos interessar e nos manter conectados, enquanto nosso tempo e preferências são comercializados para empresas que postam seus anúncios.

Sobre essa potencialização do nosso próprio “eu” pelas redes sociais, em uma referência Geek, podemos parafrasear as palavras do personagem Dr. Erskine a Steven Rogers no filme “Capitão América: O primeiro vingador”, e dizer que com o uso dos algoritmos nas redes sociais: “bom se torna ótimo, o mau se torna pior”.

Este é basicamente oceano cultural em que nos encontramos submersos no Ocidente, com especial destaque no Brasil. Nós, Cristãos Evangélicos, ou Protestantes, onde me encontro (pois pela Graça de Deus fui chamado ao Ministério Pastoral Batista), não estamos alheios a esta cultura, na verdade somos expostos a ela por mais tempo diário do que somos expostos ao valores do Evangelho de Jesus Cristo (considerando o tempo diário empregado em leitura, oração, cultos etc., o tempo restante é muito maior, e pode ser que a exposição cultural a ele, o convívio com outros que não partilham da nossa fé na escola, trabalho, empresa e faculdade sejam quantitativamente maior).

Prova desta exposição são os perfis nas redes sociais dos Cristãos! Olhe sua própria página, veja quantas postagens são mensagens bíblicas (textos da Bíblica, pregações etc.) e quantas são relativas a política, família, filmes, músicas, comida etc.? As suas postagens dizem mais sobre como, ou onde, está o seu coração que a mera declaração de fé! “Pois onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração” (Mt 6.21).

Pensamos neste texto apenas em matéria de dinheiro, mas você acha que o tempo e a energia que você gasta nas suas redes sociais não tem valor algum? Não determinam também o que é o seu “tesouro”, e junto com ele, onde também estará o seu “coração”?

Por isso, muitos cristãos são movidos por valores da cultura geral sem filtrá-los pelas lentes ou peneiras que o Evangelho possui. Muitos são os que, embalados pela ideia geral de liberdade, pátria, Deus, família, conservadorismo, liberalismo, marxismo, esquerdismo, ou direitismo etc.; fazem das suas postagens, mesmo sem perceber, a sua declaração pessoal de fé!

A verdade é que o Evangelho de Jesus Cristo é completamente diferente de qualquer ideologia humana, não há como caracterizá-lo na direita, esquerda ou centro político. Não é conservador, nem liberal. Não é comunista nem capitalista. É algo totalmente diferente, por isso, os cristãos que além de meramente se identificarem com o nome de Cristo, verdadeiramente procuram viver o Evangelho, também não se enquadram nestas ideologias, o que traz muita confusão às pessoas que tentam nos rotular quando nos manifestamos.

Se disser que sou contra o aborto, pois Deus é o Autor da Vida, e por isso ninguém tem o direito de cerceá-la, sou cristão conservador (fundamentalista, etc.)! Por outro lado, se disser que sou contra a pena de morte, pelo mesmo motivo bíblico, sou cristão liberal (marxista, comunista, esquerdista, etc.)!

Se reproduzo o pensamento bíblico que a prática homossexual é pecado, devendo ser abandonada, sou cristão conservador! Se afirmou que homossexuais são amados por Deus e devem ser respeitados e amados pela igreja, sou cristão progressista e liberal!

Se digo que o armamentismo, tão apregoado atualmente no Brasil, é contrário ao ensino do Evangelho, sou esquerdista! Da mesma forma quando digo que os injustiçados socialmente devem ter na igreja e nos cristãos os seus defensores, ou que os direitos humanos são em primeiro lugar direitos concedidos por Deus, e devem ser respeitados!

Todavia, se digo que aquele que faz uso da violência contra outros cidadãos ou órgãos públicos (Ex.: polícia) e vem a sofrer as consequências dos seus atos, fez uma escolha pessoal e é responsável por ela (a despeito da tristeza com que constato o resultado do mau uso do livre-arbítrio) sou conservador fundamentalista!

Na verdade, quando faço cada uma dessas afirmações, o faço com o mesmo fundamento: A Bíblia! Tendo como cerne o Evangelho de Jesus Cristo! Amor e Misericórdia de Deus em pleno equilíbrio com Justiça e Santidade: Graça!

Mas não há como encaixar todo este conjunto de afirmações em nenhuma ideologia humana. Amar os inimigos, orar pelos que nos perseguem, abençoar e não amaldiçoar, não é pauta da direita nem da esquerda, e certamente não cabe nas redes sociais que transpiram ódio à diferença de pensamento, só o Evangelho comporta tudo isso!

Assim, se dizemos que somos cristãos, precisamos ser diferentes da esquerda, da direita (e também do centrão)! Logo, sobre as humanas ideologias de direita e esquerda, conservadoras ou progressistas, podemos afirmar o mesmo que o personagem “Bárbavore” no clássico de J.R. Tolkin “O Senhor dos Anéis (As duas Torres)”: “Não sei nada sobre lados. Vou pelo meu próprio caminho; mas o vosso caminho pode acompanhar o meu por uns tempos[8].

“O Caminho” que seguimos é o único caminho que toda pessoa deve trilhar para voltar a Deus: Jesus Cristo” Ele disse que Ele é “o” caminho (João 14.6)!

O caminho de conservadores ou progressistas; seja a matriz ideológica que qualquer pessoa defenda, pode por vezes parear com o nosso caminho Cristão, seja na defesa da família ou dos direitos humanos; seja na denúncia às injustiças sociais ou na defesa da liberdade de crença (o que é um princípio Batista[9]), mas nunca será o nosso Caminho!

Não devemos abandonar nosso Caminho perfeito para trilhar caminhos ideológicos humanos, quaisquer que sejam as suas preferencias; nem permitir que nosso próprio coração seja enganado e levado a seguir a cultura geral que reverbera ódio e comportamento contrário aos ensinos bíblicos (em especial nas redes sociais, que potencializam o que já está no coração do usuário).

Assim, a única declaração de fé que é necessária, indispensável ao cristão, é apenas uma; é o mesmo Caminho, é Jesus Cristo manifesto em seu Evangelho, que é o Poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16)!

Esse sou eu, cristão, somente cristão, muito prazer!

Pr. Marcos Milagre



[1] ECO. Umberto. Fascismo Eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020.

[2] BAUMAN. Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[5] Expressão que significa a quantidade de tempo que o usuário passa na rede social.

[6] Edward Tufte, Professor da Universidade de Yale, citado no documentário “O Dilema das Redes”, disponível na Netflix.

[7] FOER, Franklin. O mundo que não pensa. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 73. O autor se refere aos usuários do Facebook quando traz este percentual.

[8] TOLKIEN. J.R.R. As duas torres: Segunda parte de O Senhor dos Anéis. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2019, p. 693.

[9] www.convencaobatista.com.br, acessado em 14/05/2021.

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