EU, CRISTÃO!
Há algum tempo planejo
escrever uma declaração pessoal de fé, mas o tempo é preenchido por tantas
atividades que a escrita fica sempre para o momento oportuno que não chega,
confesso que prefiro ler a escrever, talvez porque há tantas pessoas mais
capazes escrevendo, que ler seus livros, ensaios e artigos torna-se muito
prazeroso.
Chega um momento, todavia,
que é preciso externar uma posição pessoal sobre a cosmovisão que abraçamos e
através da qual passamos a enxergar o mundo que nos cerca.
Nossos dias reclamam essa
tomada de posição, especialmente pela convulsão cultural que temos presenciado no
Brasil e em todo o mundo, onde antigas ideologias totalitárias, que pareciam
sepultadas sob a ignomínia pós-Segunda Guerra, reaparecem sem pudor algum dos
dois lados da Linha do Equador, até mesmo no nosso multicultural país.
Para tanto, basta comparar
com olhar atento as características do que Umberto Eco chama de “Ur-Fascismo”
ou “Fascismo Eterno” na sua pequena obra
de mesmo nome[1],
e ler sistematicamente as postagens e declarações de muitos políticos
brasileiros e seus “seguidores”, suas reações, pressupostos e princípios para
enxergar isso. Está tudo diante dos nossos olhos, na tela do smartphones, para
quem tem olhos para ver.
Tudo isso catalisado pela
abundância dos meios de comunicação que a modernidade tecnológica oferece; hoje
qualquer pessoa que tenha um celular e acesso à internet pode apresentar um
programa audiovisual e expor seu pensamento; com isso, a centralidade da
notícia, da informação, da formação de opinião deixou de ser propriedade de
grupos de informação tradicionais como jornais, revistas etc. e ganhou as ruas,
com todos os benefícios e riscos que isso oferece, em especial da ausência de
responsabilidade com a integridade e veracidade das informações.
Na concepção do sociólogo
Zygmunt Balman, vivemos em uma “modernidade líquida”[2], termo
usado para definir o mundo globalizado,
marcado pela “liquidez e volatilidade”. No mundo “concreto” a religião e o nacionalismo davam um sentido para a
comunidade e um sentimento de pertencimento. Assim, o ser humano construía sua
identidade a partir dessas referências.
Todavia,
uma mudança nos anos 60 e 70 promoveram o enfraquecimento das “instituições” que
serviam como supedâneo para o indivíduo construir sua identidade como as
crenças religiosas, a família e a escola.
De
Bauman, ainda, pode ser destacado o conceito do “pêndulo” que oscila na
sociedade humana, entre segurança e liberdade, sendo que na visão do referido
sociólogo, aparentemente este pêndulo esteja voltando da “liberdade”, o
sentimento reinante no pós-Segunda Guerra, para a “segurança”, em especial pelo
medo genérico (sem uma causa identificável, chamado de “medo líquido” por
Balman) da inconstância fluída da modernidade líquida (tardia ou
pós-modernidade).
Na
Europa, notícias recentes do manifesto de militares franceses sobre uma
iminente “guerra civil sangrenta”[3], movida
pelos sentimentos anti-imigrantista presente na França, em especial contra os
imigrantes islâmicos, foi apoiada por Marine Le Pen, reconhecida representante
da extrema-direita francesa. O retorno do pêndulo rejeita a liberdade da
convivência pacífica entre os povos, o globalismo e o pluralismo; ressaltando o nacionalismo e a defesa da
predominância religiosa da maioria.
No
caso do Brasil, o retorno do pêndulo tem ressuscitado velhos medos do século
XX, tais como o “comunismo”[4]. Mas
o pêndulo ainda não retornou da liberdade para a segurança, há intensa
propaganda de matriz libertária individual em foco, tais como os direitos da
comunidade LGBTQ+; movimento feminista, inclusive pró-aborto; movimentos
sociais pela distribuição de terras, moradias; direitos humanos etc.
Todos os grupos ideológicos querem
guiar o movimento do pêndulo para a liberdade ou segurança, o choque é
inevitável e, na era da tecnologia, acontece brutalmente nas redes sociais. O
ódio jorra no YouTube, Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter etc. O debate
amistoso, cordial e construtivo de ideias não tem espaço nestes ambientes
virtuais.
Potencializa este ódio os
expedientes utilizados no que podemos chamar de “guerra cultural”. O uso de
“robôs”, que substituem as pessoas reais; e as Fake News, que apresentam
mentiras como se fossem verdades, ou a verdade mesclada com a mentira (meias verdades),
que dá no mesmo.
Isto aliado ao aspecto
empresarial que as redes sociais empregam, valendo-se dos dados de cada usuário
para obter lucro com o engajamento[5]
por meio de algoritmos que aprisionam a pessoa em uma bolha de informações para
mantê-la conectada por mais tempo, exposta aos anúncios publicitários que geram
o lucro. Um detalhe é que “existem
apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de
drogas e a de software”[6],
isso já deveria nos fazer refletir sobre o uso das redes sociais.
Tal bolha apenas
potencializa o pensamento do próprio usuário; aquele que tem, por exemplo, um
viés de esquerda ou direita, receberá as notícias, informações, produtos etc.
que mais se adequam ao seu próprio pensamento, privando-o do contraditório e do
direito fundamental às múltiplas fontes de informação.
Se você, como eu e mais 60%
em média dos usuários[7],
não sabia da existência ou da extensão e risco dos algoritmos, recomendo a
leitura do Livro “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais”,
de Jaron Lanier, ou assista ao documentário “O dilema das redes”, na Netflix.
Para uma reflexão sobre a necessidade de fontes seguras e múltiplas de informação,
recomendo o livro do jornalista americano Franklin Foer, “O mundo que não
pensa”.
O fato é que somos
alimentados nas redes sociais pelo que já está no nosso coração, e é
identificado pelos algoritmos que as redes sociais usam para selecionar dentre
a infinidade de informações aquilo que vai nos interessar e nos manter
conectados, enquanto nosso tempo e preferências são comercializados para
empresas que postam seus anúncios.
Sobre essa potencialização
do nosso próprio “eu” pelas redes sociais, em uma referência Geek, podemos parafrasear as palavras do personagem
Dr. Erskine a Steven Rogers no filme “Capitão
América: O primeiro vingador”, e dizer que com o uso dos algoritmos nas redes
sociais: “o bom se torna ótimo,
o mau se torna pior”.
Este é basicamente oceano
cultural em que nos encontramos submersos no Ocidente, com especial destaque no
Brasil. Nós, Cristãos Evangélicos, ou Protestantes, onde me encontro (pois pela
Graça de Deus fui chamado ao Ministério Pastoral Batista), não estamos alheios
a esta cultura, na verdade somos expostos a ela por mais tempo diário do que
somos expostos ao valores do Evangelho de Jesus Cristo (considerando o tempo
diário empregado em leitura, oração, cultos etc., o tempo restante é muito
maior, e pode ser que a exposição cultural a ele, o convívio com outros que não
partilham da nossa fé na escola, trabalho, empresa e faculdade sejam quantitativamente
maior).
Prova desta exposição são os
perfis nas redes sociais dos Cristãos! Olhe sua própria página, veja quantas
postagens são mensagens bíblicas (textos da Bíblica, pregações etc.) e quantas
são relativas a política, família, filmes, músicas, comida etc.? As suas
postagens dizem mais sobre como, ou onde, está o seu coração que a mera
declaração de fé! “Pois onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração”
(Mt 6.21).
Pensamos neste texto apenas
em matéria de dinheiro, mas você acha que o tempo e a energia que você gasta
nas suas redes sociais não tem valor algum? Não determinam também o que é o seu
“tesouro”, e junto com ele, onde também estará o seu “coração”?
Por isso, muitos cristãos
são movidos por valores da cultura geral sem filtrá-los pelas lentes ou
peneiras que o Evangelho possui. Muitos são os que, embalados pela ideia geral
de liberdade, pátria, Deus, família, conservadorismo, liberalismo, marxismo,
esquerdismo, ou direitismo etc.; fazem das suas postagens, mesmo sem perceber,
a sua declaração pessoal de fé!
A verdade é que o Evangelho
de Jesus Cristo é completamente diferente de qualquer ideologia humana, não há
como caracterizá-lo na direita, esquerda ou centro político. Não é conservador,
nem liberal. Não é comunista nem capitalista. É algo totalmente diferente, por
isso, os cristãos que além de meramente se identificarem com o nome de Cristo,
verdadeiramente procuram viver o Evangelho, também não se enquadram nestas
ideologias, o que traz muita confusão às pessoas que tentam nos rotular quando
nos manifestamos.
Se disser que sou contra o
aborto, pois Deus é o Autor da Vida, e por isso ninguém tem o direito de
cerceá-la, sou cristão conservador (fundamentalista, etc.)! Por outro lado, se
disser que sou contra a pena de morte, pelo mesmo motivo bíblico, sou cristão
liberal (marxista, comunista, esquerdista, etc.)!
Se reproduzo o pensamento
bíblico que a prática homossexual é pecado, devendo ser abandonada, sou cristão
conservador! Se afirmou que homossexuais são amados por Deus e devem ser
respeitados e amados pela igreja, sou cristão progressista e liberal!
Se digo que o armamentismo, tão
apregoado atualmente no Brasil, é contrário ao ensino do Evangelho, sou
esquerdista! Da mesma forma quando digo que os injustiçados socialmente devem
ter na igreja e nos cristãos os seus defensores, ou que os direitos humanos são
em primeiro lugar direitos concedidos por Deus, e devem ser respeitados!
Todavia, se digo que aquele
que faz uso da violência contra outros cidadãos ou órgãos públicos (Ex.: polícia)
e vem a sofrer as consequências dos seus atos, fez uma escolha pessoal e é
responsável por ela (a despeito da tristeza com que constato o resultado do mau
uso do livre-arbítrio) sou conservador fundamentalista!
Na verdade, quando faço cada
uma dessas afirmações, o faço com o mesmo fundamento: A Bíblia! Tendo como
cerne o Evangelho de Jesus Cristo! Amor e Misericórdia de Deus em pleno
equilíbrio com Justiça e Santidade: Graça!
Mas não há como encaixar todo
este conjunto de afirmações em nenhuma ideologia humana. Amar os inimigos, orar
pelos que nos perseguem, abençoar e não amaldiçoar, não é pauta da direita nem
da esquerda, e certamente não cabe nas redes sociais que transpiram ódio à
diferença de pensamento, só o Evangelho comporta tudo isso!
Assim, se dizemos que somos
cristãos, precisamos ser diferentes da esquerda, da direita (e também do
centrão)! Logo, sobre as humanas ideologias de direita e esquerda, conservadoras
ou progressistas, podemos afirmar o mesmo que o personagem “Bárbavore” no
clássico de J.R. Tolkin “O Senhor dos Anéis (As duas Torres)”: “Não
sei nada sobre lados. Vou pelo meu próprio caminho; mas o vosso caminho pode
acompanhar o meu por uns tempos”[8].
“O Caminho” que seguimos é o
único caminho que toda pessoa deve trilhar para voltar a Deus: Jesus Cristo”
Ele disse que Ele é “o” caminho (João 14.6)!
O caminho de conservadores
ou progressistas; seja a matriz ideológica que qualquer pessoa defenda, pode
por vezes parear com o nosso caminho Cristão, seja na defesa da família ou dos
direitos humanos; seja na denúncia às injustiças sociais ou na defesa da liberdade
de crença (o que é um princípio Batista[9]),
mas nunca será o nosso Caminho!
Não devemos abandonar nosso
Caminho perfeito para trilhar caminhos ideológicos humanos, quaisquer que sejam
as suas preferencias; nem permitir que nosso próprio coração seja enganado e
levado a seguir a cultura geral que reverbera ódio e comportamento contrário
aos ensinos bíblicos (em especial nas redes sociais, que potencializam o que já
está no coração do usuário).
Assim, a única declaração de
fé que é necessária, indispensável ao cristão, é apenas uma; é o mesmo Caminho,
é Jesus Cristo manifesto em seu Evangelho, que é o Poder de Deus para salvação
de todo aquele que crê (Rm 1.16)!
Esse sou eu, cristão, somente
cristão, muito prazer!
Pr. Marcos Milagre
[1] ECO. Umberto. Fascismo Eterno. Rio
de Janeiro: Record, 2020.
[2] BAUMAN. Zygmunt. Modernidade
Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[3] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56914093, acessado em 13/05/2021.
[4] https://bhaz.com.br/bh-tem-carreata-com-apoiadores-de-bolsonaro-em-defesa-da-familia-e-liberdade/, acessado em 13/05/2021.
[5] Expressão que significa a
quantidade de tempo que o usuário passa na rede social.
[6] Edward Tufte, Professor da Universidade
de Yale, citado no documentário “O Dilema das Redes”, disponível na Netflix.
[7] FOER, Franklin. O mundo que não
pensa. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 73. O autor se refere aos usuários do
Facebook quando traz este percentual.
[8] TOLKIEN. J.R.R. As duas torres:
Segunda parte de O Senhor dos Anéis. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil,
2019, p. 693.
[9] www.convencaobatista.com.br, acessado
em 14/05/2021.
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